terça-feira, 1 de junho de 2010

O mentiroso

É o cínico que, na pretensão de "falar a verdade" em qualquer lugar, a qualquer hora e a qualquer pessoa de igual maneira, só exibe uma imagem idolátrica e morta da verdade.

...um professor pergunta a uma criança, diante da classe, se é verdade que seu pai frequentemente volta embriagado para casa. De fato é assim, mas a criança nega. A pergunta do professor colocou-a numa situação que ela ainda não tem condições de enfrentar. Sente, apenas, que aqui aconteceu uma ingerência indevida na ordem da família que ela deve rechaçar. O que se passa na família não é da conta da classe. A família tem seu mistério próprio que deve preservar. O professor desrespeitou a realidade dessa ordem. A criança deveria achar, em sua resposta, um caminho que respeitasse, de igual maneira, a ordem da família e da escola. Ela ainda não tem capacidade para isso; faltam-lhe a experiência, o conhecimento e a habilidade da expressão correta. Ao responder negativamente à pergunta do professor, a resposta é enganosa, mas, ao mesmo tempo, expressa a verdade de que a família é uma estrutura sui generis em cuja intimidade não cabe ao professor penetrar. Podemos qualificar a resposta da criança como mentira; mesmo assim, essa mentira contém mais verdade, isto é, ela corresponde mais à realidade do que se a criança tivesse revelado a fraqueza do pai à classe. A culpa da mentira recai unicamente sobre o professor.

É verdade que Kant afirmou ser orgulhoso demais para, algum dia, faltar com a verdade, mas, ao mesmo tempo, provou o absurdo dessa assertiva ao afirmar que se sentiria comprometido a dar uma informação verídica a um criminoso que viesse perseguir em sua casa o amigo que estava acoitando (encobrindo). Se chamarmos tal procedimento de mentira, ela recebe uma consagração e justificação moral que contradiz de toda maneira o  seu conceito. Disso se deduz, inicialmente, que não é possível definir a mentira a partir da contradição entre pensar e falar. Essa contradição nem sequer é, necessariamente, parte integrante da mentira. Há uma fala perfeitamente correta e inquestionável nesse sentido e que, assim mesmo, é mentira.

É o cínico que, na pretensão de "falar a verdade" em qualquer lugar, a qualquer hora e a qualquer pessoa de igual maneira, só exibe uma imagem idolátrica e morta da verdade.

Bonhoeffer em Ética

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hugo


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