segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Carta do mundo dos mortos para um amigo


Há exatamente 5 reveillons eu estava numa praia. Como sempre, foi um saco. Todos só falavam em cerveja e futebol. Eu caí na besteira de querer conhecer esse tal de Ivan Illich que você falava e imprimi "O direito ao desemprego criador" para ler no feriado. Tudo o que eu fazia era ler ao lado do meu filho enquanto ele dormia. Ele tinha 3 meses. Eu leio muito devagar, mas li aquilo nos dois dias que fiquei lá. Os papeis viraram lixo de tanto que risquei. Eu estava espantado. Eu não acreditava como havia caído tão bem no conto do vigário. Até ali eu já suspeitava de muita coisa, mas foi a primeira vez que me percebi completamente atolado e preso, e como eu tinha ido voluntariamente para cada uma das prisões, e como celebrava cada uma delas, e como ostentava as minhas algemas como se fossem adornos! Puta que pariu! Ainda naqueles dias durante a leitura, esse incômodo passou a latejar na minha cabeça: "Como eu vou conseguir sentar naquela cadeira segunda-feira? Como eu vou conseguir usar aquela coleira?". Eu tinha 32 anos e aquela era a pior leitura que eu já havia feito. Descobri que eu era um merda. Para não enlouquecer precisei buscar linhas de fuga, ou criá-las. Eu só pensava nisso. Eu precisava achar ou inventar espaços onde pudesse respirar. Durante a festa me afastei e orei sozinho por isso. Não tem sido fácil e as coisas só pioram. Uma ação pede outras. Uma crise desencadeia outras. Esse troço não tem fim. Dormir e sonhar é mais fácil. A sorte é que é prazeroso construir a vida com as próprias mãos e colher frutos.
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hugo lucena theophilo
http://hugotheophilo.blogspot.com
"Cada um de nós, e cada um dos grupos em cujo seio vivemos e trabalhamos, deve se tornar o protótipo da era que desejamos criar." - Ivan Illich


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