quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Diário de um detento

A tal "crise dos 30" deve ser esse cansaço que começa a dar quando se vão os primeiros 5 ou 6 anos da vida dita produtiva e se percebe que tem algo errado: que aquele "lugar" onde se queria estar em 5 anos estranhamente ficou mais distante; que aquele nível de conforto pretendido se mostrou baixo; que os 10 requisitos para a felicidade almejada se mostraram insuficientes e viraram 20 que, tão logo sejam alcançados, virarão 50; que toda vez que a pedra chega ao cume ela rola montanha abaixo e já é preciso fazê-la subir novamente; que o saco da felicidade provavelmente esteja furado, pois o trabalho para enchê-lo nunca chega ao fim.

É possível perceber claramente que a minha geração lida com a tal "crise dos 30" basicamente de duas formas: uma é investigando desconfianças e abraçando incômodos; outra é silenciando questionamentos/pensamentos que apontem para tais desconfianças. Uns, incomodados que estão, se dão à peregrinação que é produzir uma vida nova ou novos sentidos para a vida. Outros apenas livram-se (de várias formas) dos incômodos inerentes, afinal quem simpatiza com a ideia de ganhar tormentos que não tinha e passar a ter o sono atrapalhado? Ambos, no entanto, estes e aqueles, estão cansados e carregando no corpo, no humor e nas relações os sintomas dessa crise de sentidos. Uns sabem de onde tudo isso vem. Outros não sabem e preferem continuar sem saber.

É frágil todo edifício normativo cuja função é proteger indivíduos contra as forças do caos e dar a eles a ilusão necessária para que consigam dormir tranquilos, seguros de que as suas definições da realidade fazem sentido. É frágil e sustentado por bases igualmente frágeis: a carência dos seus abrigados; a defesa apaixonada que fazem do pacote de significados que lhes confere sentido à vida; o medo de perderem o abrigo e, por fim, a perseguição/violência promovida contra os desertores. Carência, pathos, medo, violência... Ao menor sinal de ameaça ao edifício que o abriga, o carente/apaixonado/amedrontado reage com violência, como quem defende a própria existência contra a ameaça de extinção. Pelo medo da falta de sentido e por estar em suas mãos garantir que o prédio não desabe, o carente/apaixonado/amedrontado e, agora violento, dificilmente conhece a paz. Antes, conheceria se admitisse que existe vida fora.

Quando você sai da igreja (estabelecimento religioso), por exemplo, acham que é porque você deseja o inferno. Não pensam que, ao contrário, você busca espiritualidade mais profunda e siples. Não cogitam a possibilidade de que a instituição atrapalhe o cultivo de uma vida mais sadia, tão apaixonados que são pelo edifício normativo que lhes dá sentido. Acham que você quer menos vida e não mais. Quando você fala que está cansado da cidade e de tudo o que ela exige (emprego, a troca da vida pelo fim da vida, pressa, deslocamentos nervosos, competição, consumismo, "paz" armada, "saúde" de farmácia, alimentação de shopping...) e quando você dá pinta de que precisa romper com mais essas instituições e que está caminhando para ter uma vida mais simples, sem emprego ou num lugar mais distante, pensam (igualmente) que você enlouqueceu e está buscando menos vida e não mais, que você quer menos conforto e não mais. Como diz o outro: "As coisas mudam de nome, mas continuam sendo religiões..."

Enquanto você não percebe que não compra com dinheiro, mas com o tempo de vida gasto para conseguir o dinheiro (vide Mujica), enquanto essa ficha não cai, você dorme bem e tudo o que faz é trocar a vida por dinheiro. Mas ai o seu pai morre e você vê que a vida acaba e grita pedindo para ser vivida. Ai você silencia os incômodos e segue gastando a vida no ralo do nada. Ai o seu tio morre e, de novo, a vida grita dizendo que é um sopro. E vai sendo assim até que um dia quem morre é você. Com sorte a estratégia da aposentadoria (de trocar a vida pelo fim da vida) dá certo. Mas com sorte ela já não vale a pena. E sem sorte, então, nem se fala!

Para conseguir de volta habilidades que nossos avós tinham até bem pouco tempo, mas que fomos perdendo no processo de servir ao estado atual de coisas (esses modos de funcionamento das cidades)...pra conseguir essas coisas de volta a ponto de elas engendrarem modos de vida alternativos (o direito ao desemprego criador), é preciso aprender a ir trocando os pneus com o carro em movimento.

Fruto do trabalho é a construção do ambiente da vida que vai permanecendo e sendo experimentado. Furto do trabalho era vender parte da vida desperta em troca de dinheiro.

Sexo seguro não é com camisinha e nem com parceiro fixo. Sexo seguro é com emprego fixo.

hugo theophilo


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